segunda-feira, 29 de julho de 2019

Um pouco de Reflexão sobre o ser humano

A realidade e o valor da pessoa humana (Karol Wojtyla)

O ser humano é alguém, enquanto o animal é apenas um indivíduo. O mundo visível, por sua vez, constitui algo. A  coisa é um objeto sem vida. O homem, por sua vez, não se reduz ao conceito de  indivíduo da espécie.  A inteligência constitui uma das características essenciais que distingue a pessoa humana dos demais seres visíveis. Ao mesmo tempo, ela possui uma interioridade inexistente nos animais mais aperfeiçoados. O ser humano possui uma perfeição ontológica que a denominação pessoa quer expressar. A sua vida interior se identifica com a vida espiritual. A estrutura espiritual manifesta questionamentos específicos  quanto à causa primeira da realidade, como o ser humano pode ser bom e como ele poderá ter a posse plena do bem. O primeiro problema tem implicações noética-metafísicas e o segundo expressa o desejo ou, com mais precisão, a inclinação da criatura humana à realização plena.  A conexão da pessoa com o mundo se inicia da esfera física e sensorial,  mas, no caso dela, apresenta um desenvolvimento próprio no âmbito da  vida  interior. Outra distinção significativa do homem-pessoa consiste em, ao receber a realidade externa e manifestar uma reação espontânea e mesmo mecânica, empenhar-se para afirmar o próprio  eu. A pessoa humana procura, então, a autodeterminação que se fundamenta na reflexão. Ela   escolhe o que pretende fazer, desvelando o seu dinamismo reflexivo. Revela-se aqui a sua capacidade de livre arbítrio. A identidade humana é, de fato, essencialmente diferente dos animais . O homem-pessoa é  senhor de si mesmo,  incomunicável, inalienável. Possui uma interioridade e autodeterminação. O ato de vontade cada homem é insubstituível por qualquer outro ato que não seja o dele. Cada ser humano é  único e irrepetível  e, por este lado,   assemelha-se com o mineral, a planta e o animal. O homem é sujeito e objeto da ação. O sujeito, aquele que age, dirige a sua ação para um objeto. Pode aparecer outro significado do termo  objeto  que é aquele que indica quando uma pessoa é reduzida a um nível ontológico inferior ao seu, sendo tratada como  objeto, como coisa, caracterizando-se como um instrumento de uso. Ocorre, aqui, um desvirtuamento da finalidade do homem-pessoa.
É de grande importância analisar o sentido de a palavra   usar,  tendo-se em vista as implicações que aparecerão tanto para a antropologia como para a ética. Até certo ponto, usar e não usar, tendo a pessoa como fim da ação, encaminhará decisivamente o problema da norma personalista. Segundo Karol Wojtyla, Usar significa servir-se de qualquer coisa como instrumento, por outras palavras quer dizer servir-se de um objeto de ação como meio para um fim visado pelo sujeito agente.[1]
Aparecerão, fundamentalmente, dois significados de a palavra  usar no que se refere à pessoa.   Aquilo pelo que se  age constitui o fim da ação. A existência de meios é indicada pela existência do fim. O meio se submete ao fim e, de certo modo, àquele que age. O meio, portanto, está a serviço do agente e do fim. Não existe interdição que aconteça este tipo de relação entre a pessoa e as coisas reduzidas a  indivíduos ou unidades de uma espécie, seja da esfera inanimada ou orgânica, desde que sejam usados conforme a razão, tendo em vista as necessidades do ser humano. O homem-pessoa possui compromissos morais,  também,  com os entes impessoais. A utilização dos animais deve ser conduzida de modo a evitar-lhes o sofrimento.
Na relações entre os seres humanos, a realidade torna-se problemática. A pessoa não pode ser tratada como meio em todas e quaisquer situações da sua existência como na família, na empresa, no esporte, nas diversas profissões, no relacionamento masculino e feminino. A interdição da pessoa como meio se deve ao fato de ela possuir a natureza de ser sujeito que é capaz de pensar e de escolher os seus fins. A pessoa é violentada quando recebe o tratamento de meio, enquanto, por  direito natural, ela deve ser fim da ação. A própria estrutura ontológica da pessoa é o referencial, e, portanto, irremovível. Não se trata nem se reduz a algo convencional e cultural. A ininstrumentalidade da pessoa emerge de sua natureza que é inalienável de fato e de direito. Acompanhando Kant na Fundamentação da Metafísica dos Costumes,  Karol Wojtyla, pelo menos em uma passagem, afirma que a  pessoa não deve ser para os outros só um meio.[2]   A pessoa, conforme Kant possui a sua própria natureza, que é a  racionalidade. Ela, sem se prejudicar, pode concordar ou mesmo de forma involuntária, ser  meio para o fim, condicionada ao fato de que este fim de outrem seja honesto.  É necessário lembrar que o conceito de pessoa, no pensamento kantiano, tem as aporias, particularmente mediante a sua gnosiologia que nega à razão humana a capacidade do conhecimento ontológico e afirmar a liberdade, a imortalidade da alma e a existência de Deus como postulados. Havendo, entretanto, alguma discrepância axiológica, a pessoa deve fazer valer a sua condição de inalienabilidade e não o fim proposto. Toda a análise que Karol Wojtyla desenvolve,  particularmente sobre o relacionamento entre o homem e a mulher, elimina o , não permitindo entender que haja alguma circunstância ou aspecto da questão que permita ou possibilita alguma instrumentalização no sentido anteriormente referido.  Ele é categórico ao afirma que  Ninguém pode servir-se duma pessoa como um meio nem sequer o Deus-Criador.[3]
A pessoa racional e livre é assim  criada por Deus. Isto indica que Ele concede a ela escolher os objetivos do seu agir e que determinou que o ser-pessoal não será instrumento inconsciente de fins de outrem.  O próprio Deus nunca instrumentalizará a pessoa.  Quando ele decide levar o homem a determinados fins,  cria condições para que o ser humano primeiramente tome consciência, assuma aqueles fins como seus e opte, livremente,  por aqueles fins. O homem conhece, mas continua livre para  tender para os fins  propostos por Deus, se optou  por eles. A condição de  a pessoa humana não  ser um meio da ação constitui um enunciado da ordem moral natural, ordem que receberá características personalistas.  Contradiz a natureza da pessoa ser instrumento para fins de outro sujeito. Segundo Karol Wojtyla, o princípio kantiano, em oposição ao utilitarismo anglo-saxão,  Age de tal modo que nunca trates uma pessoa simplesmente como um meio, mas sempre como o fim da tua ação, deveria receber uma fórmula um pouco diferente porque Kant, além de encaminhar o princípio de forma negativa, não deu uma interpretação por inteiro do mandamento do amor. Este mandamento elimina toda a redução da pessoa a  mero objeto de prazer e, além disto,  exige a afirmação da pessoa por si mesma.[4] O segundo imperativo, portanto, deveria ser formulado da seguinte maneira: Todas as vezes que no teu procedimento uma pessoa é objeto da tua ação, deves lembrar que não podes tratá-la como instrumento, mas deves considerar que ela mesma tem ou deveria ter o seu próprio fim.[5]
Fica fundamentada, neste princípio, toda noção de liberdade humana concebida de forma adequada, o que  se aplica, particularmente,  à   liberdade de consciência. A liberdade e a verdade, por sua vez,  apresentam uma íntima relação. Não existe autêntica liberdade sem se referir à verdade. A ação humana deve ser submetida à verdade pela consciência,  quando esta cumpre a função que lhe é própria.
Karol Wojtyla distingue entre a análise psicológica e a ética. A experiência que o homem tem, na sua interioridade,  de que ele é causa de seus atos,  constitui o ponto de partida de ambas. Esta causalidade é um elemento constituinte da vivência volitiva. A vontade é percebida como o centro da vivência daquela causalidade. A partir daqui, a ética e a psicologia tomam rumos diferentes. A última investiga os mecanismos da vontade quanto à sua forma de ação. A psicologia utiliza o método indutivo-experimental e, ao mesmo tempo, procura descobrir  os   motivos concretos que dão origem ao fim que o agente escolheu. A ética, por sua vez, tem em vista a busca do entendimento integral da  vivência da  causalidade. E, para isto, procura esclarecer o fim que é o valor moral. Neste sentido, a causalidade é compreendida como a fonte do valor ético. Este valor  é o elemento que encaminha o homem para o ser moralmente bom ou mau. A pessoa humana poderá ser boa ou má  enquanto se aperfeiçoa como pessoa e, também, na medida em que  manifesta fidelidade ao valor.
A estrutura da ação do homem se objetiva pelos pensamentos e atos voluntários. As emoções antecipam, seguem juntas e se revelam à consciência no tempo em que a ação concluiu. Existiriam situações em que a consciência não se daria conta do ato  objetivo em si  se não existissem as vivências da emocionalidade e da afetividade. Os estados  emocional-afetivos podem ser negativos, resumidos no sofrimento, e positivos, manifestados pelo prazer e se matizando de formas diversas. Karol Wojtyla explica que, neste segundo sentido, a palavra “Usar” significa vivenciar o prazer, este prazer que em vários matizes está unido à ação e ao objeto da ação. (...) O segundo significado desta palavra é igualmente importante para a moralidade.[6]
O termo  usar, no seu segundo significado, é somente uma aplicação particularizada do primeiro. Se o homem age, no relacionamento com outro,  objetivando o prazer como fim exclusivo, afastando o sofrimento do horizonte de sua ação, a pessoa se transmuda em um meio para um fim. O usar, no primeiro significado, exprime um sentido mais amplo e objetivo. No segundo significado,  o sentido é mais limitado e propriamente subjetivo. A ética tem como trabalho distinguir o amar do uso, inclusive quando o  usar se disfarce de amor  e procure a justificação nele.
Karol Wojtyla  empreende uma crítica do utilitarismo que identifica o bem maior do ser humano com o prazer. O utilitarismo, em qualquer modalidade, na medida em que concebe o  ser humano como instrumento, em que o valor da pessoa é entendido como possível de ser reduzido ao valor da sua função ou utilidade, que pode ser ou não hedonista. Esta crítica não se dirige, portanto ao chamado utilitarismo personalista  para o qual o bem da pessoa deve estar subordinado a qualquer outro bem.
Segundo o autor em questão, o utilitarismo se manifesta como característica da maneira de pensar e de viver do ser humano contemporâneo. Este modo de ser e de pensar aparece, entretanto, em todas as épocas. Na contemporaneidade, entretanto, o utilitarismo se exprime de forma conscientemente formulado. A própria etimologia da palavra acentua a  utilidade da ação visto que deriva do latim uti, que significa  usar, explorar,  e do adjetivo  utilis que se traduz para  útil .
O prazer tem formas  matizadas. Pode ser mais elevado, enquanto espiritual, e mais inferior, enquanto sensitivo e material. Os utilitaristas não podem se dar conta da complexidade do ser humano, dada a sua antropologia reducionista. O ser humano se compõe, para a visão utilitarista, de sensibilidade e inteligência. A primeira o leva a rejeitar o sofrimento e desejar o prazer. A inteligência lhe permite direcionar a sua atividade de maneira a atender o que a sensibilidade indica. A norma moral fundamental é, portanto, maximizar o prazer e minimizar o sofrimento para a maior quantia  possível de seres humanos.
Karol Wojtyla afirma não poder concordar com o utilitarismo, apesar aparente razoabilidade do seu princípio, porque se instala um erro fundamental que é admitir só o prazer como o único ou supremo bem, ao qual devem subordinar-se todos os outros bens da atividade do homem e da sociedade humana.[7]
O prazer, na verdade, pode aparecer colateral, e ocasionalmente,  no agir. A estrutura da ação humana fica contradita se o prazer é posto como o fim último da atividade humana. O que a consciência e a moral ordenam, aquilo que é bom, conforme a verdade,  exige alguma renúncia que se opõe ao prazer. Ao mesmo tempo, como o prazer e o sofrimento se vinculam a um  ato concreto, eles não podem ser, total e antecipadamente,  determinados  nem projetados.  O utilitarismo concebe tudo como meio, inclusive a pessoa, para o bem que é o prazer. Os postulados utilitaristas levam a admitir  a pessoa como sujeito e objeto de uso de   vivências  prazerosas. Cria-se a situação do uso recíproca entre as pessoas. A concepção utilitarista, desta forma, vem influenciar o ser humano nas suas múltiplas áreas de relacionamento. Ao mesmo tempo, os utilitaristas esbarram  numa contradição interna quanto ao seu princípio. O prazer não se estende além do sujeito, ele é, concretamente, um bem para  este sujeito. Na verdade, pode ocorrer um altruísmo ilusório. O prazer de um somente é avaliado pelo prazer do outro. Procura-se, ainda,  a deleitação em colaborar e constatar o prazer do parceiro hedonista. Acontece uma espécie de combinação de egoísmos disfarçados de amor. Procura-se o máximo de gozo para as pessoas envolvidas. Elas se enredam no egoísmo escondido no seu relacionamento. Se,  entretanto, dar prazer ao outro deixa de ser prazeroso, corta-se o vínculo promovido pelo deleite porque cessou o bem que se procurava e pode surgir o mal. Desta forma, o relacionamento perde consistência porque se exauriu o deleite promovido pelo uso parceiro. A indiferença pode se instalar entre os dois ou em um deles. Cessada a utilidade que uma pessoa tem para a outra, desfaz-se, também,  a harmonia. Havia, na verdade, egoísmos aliados com o objetivo de conquistar o prazer comum. O amor constitui apenas uma simulação para esconder o egoísmo explorador da outra pessoa, tendo em vista o máximo de prazer. A pessoa, como se vê, continua sendo o meio para um o fim que é o prazer. Cada pessoa se permite ser instrumento do egoísmo alheio, na condição de  utilizar o outro para o próprio fim egoísta. Elas concordam em descer para o nível ontológico de meio, permitindo serem violentadas em sua natureza pessoal que é a de serem somente fim da ação. Karol Wojtyla considera esta situação a antítese do amor: “devo considerar-me como um meio e um instrumento, já que assim considero o outro”.[8]


[1] Ibid., ibid.,  p. 23
[2] Cf. id., ibid., p. 25
[3] Karol WOJTYLA.  Amor e Responsabilidade, p. 26
[4] Cf. João Paulo II.  Cruzando o limiar da esperança,   1ª. ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994
 p. 186
[5]  Karol WOJTYLA.  Amor e Responsabilidade,  p. 27
[6] Id., ibid.,  p. 32
[7] Id., ibid., p. 34
[8] Id., ibid.,  p. 37

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