A realidade e o valor da pessoa humana (Karol Wojtyla)
O ser humano é alguém,
enquanto o animal é apenas um indivíduo. O mundo visível, por sua vez,
constitui algo. A coisa
é um objeto sem vida. O homem, por sua vez, não se reduz ao conceito de indivíduo
da espécie. A inteligência constitui
uma das características essenciais que distingue a pessoa humana dos demais
seres visíveis. Ao mesmo tempo, ela possui uma interioridade inexistente nos
animais mais aperfeiçoados. O ser humano possui uma perfeição ontológica que a
denominação pessoa quer expressar. A
sua vida interior se identifica com a vida espiritual. A estrutura espiritual
manifesta questionamentos específicos
quanto à causa primeira da realidade, como o ser humano pode ser bom e
como ele poderá ter a posse plena do bem. O primeiro problema tem implicações
noética-metafísicas e o segundo expressa o desejo ou, com mais precisão, a
inclinação da criatura humana à realização plena. A conexão da pessoa com o mundo se inicia da
esfera física e sensorial, mas, no caso
dela, apresenta um desenvolvimento próprio no âmbito da vida interior. Outra distinção significativa
do homem-pessoa consiste em, ao receber a realidade externa e manifestar uma
reação espontânea e mesmo mecânica, empenhar-se para afirmar o próprio eu.
A pessoa humana procura, então, a autodeterminação que se fundamenta na
reflexão. Ela escolhe o que pretende
fazer, desvelando o seu dinamismo reflexivo. Revela-se aqui a sua capacidade de
livre arbítrio. A identidade humana é, de fato, essencialmente diferente
dos animais . O homem-pessoa é senhor de si mesmo, incomunicável,
inalienável. Possui uma interioridade
e autodeterminação. O ato de vontade cada homem é insubstituível por qualquer
outro ato que não seja o dele. Cada ser humano é único e
irrepetível e, por este lado, assemelha-se com o mineral, a planta e o
animal. O homem é sujeito e objeto da ação. O sujeito, aquele que age, dirige a
sua ação para um objeto. Pode aparecer outro significado do termo objeto que é aquele que indica quando uma pessoa é
reduzida a um nível ontológico inferior ao seu, sendo tratada como objeto,
como coisa, caracterizando-se como um instrumento de uso. Ocorre, aqui, um
desvirtuamento da finalidade do homem-pessoa.
É de grande importância
analisar o sentido de a palavra usar, tendo-se em vista as implicações que
aparecerão tanto para a antropologia como para a ética. Até certo ponto, usar e
não usar, tendo a pessoa como fim da ação, encaminhará decisivamente o problema
da norma personalista. Segundo Karol Wojtyla, Usar significa servir-se de qualquer coisa como instrumento, por outras
palavras quer dizer servir-se de um objeto de ação como meio para um fim visado
pelo sujeito agente.[1]
Aparecerão,
fundamentalmente, dois significados de a palavra usar no que se refere à pessoa. Aquilo pelo que se age constitui o fim da ação. A existência de
meios é indicada pela existência do fim. O meio se submete ao fim e, de certo
modo, àquele que age. O meio, portanto, está a serviço do agente e do fim. Não
existe interdição que aconteça este tipo de relação entre a pessoa e as coisas
reduzidas a indivíduos ou unidades de uma espécie, seja da esfera inanimada ou
orgânica, desde que sejam usados conforme a razão, tendo em vista as necessidades
do ser humano. O homem-pessoa possui compromissos morais, também,
com os entes impessoais. A utilização dos animais deve ser conduzida de
modo a evitar-lhes o sofrimento.
Na relações entre os
seres humanos, a realidade torna-se problemática. A pessoa não pode ser tratada
como meio em todas e quaisquer situações da sua existência como na família, na
empresa, no esporte, nas diversas profissões, no relacionamento masculino e
feminino. A interdição da pessoa como meio se deve ao fato de ela possuir a natureza
de ser sujeito que é capaz de pensar e de escolher os seus fins. A pessoa é
violentada quando recebe o tratamento de meio, enquanto, por direito
natural, ela deve ser fim da ação. A própria estrutura ontológica da pessoa
é o referencial, e, portanto, irremovível. Não se trata nem se reduz a algo
convencional e cultural. A ininstrumentalidade da pessoa emerge de sua natureza
que é inalienável de fato e de direito. Acompanhando Kant na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Karol Wojtyla, pelo menos em uma passagem,
afirma que a pessoa não deve ser para os outros só um meio.[2] A pessoa, conforme Kant possui a sua própria
natureza, que é a racionalidade. Ela,
sem se prejudicar, pode concordar ou mesmo de forma involuntária, ser meio
para o fim, condicionada ao fato de que este fim de outrem seja honesto. É necessário lembrar que o conceito de pessoa,
no pensamento kantiano, tem as aporias, particularmente mediante a sua
gnosiologia que nega à razão humana a capacidade do conhecimento ontológico e
afirmar a liberdade, a imortalidade da alma e a existência de Deus como
postulados. Havendo, entretanto, alguma discrepância axiológica, a pessoa deve
fazer valer a sua condição de inalienabilidade e não o fim proposto. Toda a
análise que Karol Wojtyla desenvolve,
particularmente sobre o relacionamento entre o homem e a mulher, elimina
o só, não permitindo entender que
haja alguma circunstância ou aspecto da questão que permita ou possibilita
alguma instrumentalização no sentido anteriormente referido. Ele é categórico ao afirma que Ninguém
pode servir-se duma pessoa como um meio nem sequer o Deus-Criador.[3]
A pessoa racional e livre
é assim criada por Deus. Isto indica que
Ele concede a ela escolher os objetivos do seu agir e que determinou que o
ser-pessoal não será instrumento inconsciente de fins de outrem. O próprio Deus nunca instrumentalizará a
pessoa. Quando ele decide levar o homem
a determinados fins, cria condições para
que o ser humano primeiramente tome consciência, assuma aqueles fins como seus
e opte, livremente, por aqueles fins. O
homem conhece, mas continua livre para
tender para os fins propostos por
Deus, se optou por eles. A condição
de a pessoa humana não ser um meio da ação constitui um enunciado da ordem moral natural, ordem
que receberá características
personalistas. Contradiz a natureza
da pessoa ser instrumento para fins de outro sujeito. Segundo Karol Wojtyla, o
princípio kantiano, em oposição ao utilitarismo anglo-saxão, Age de
tal modo que nunca trates uma pessoa simplesmente como um meio, mas sempre como
o fim da tua ação, deveria receber uma fórmula um pouco diferente porque
Kant, além de encaminhar o princípio de forma negativa, não deu uma
interpretação por inteiro do mandamento
do amor. Este mandamento elimina toda a redução da pessoa a mero
objeto de prazer e, além disto, exige a afirmação da pessoa por si mesma.[4] O
segundo imperativo, portanto, deveria ser formulado da seguinte maneira: Todas as vezes que no teu procedimento uma
pessoa é objeto da tua ação, deves lembrar que não podes tratá-la como
instrumento, mas deves considerar que ela mesma tem ou deveria ter o seu
próprio fim.[5]
Fica fundamentada, neste
princípio, toda noção de liberdade humana concebida de forma adequada, o
que se aplica, particularmente, à liberdade de consciência. A liberdade e
a verdade, por sua vez, apresentam uma
íntima relação. Não existe autêntica liberdade sem se referir à verdade. A ação
humana deve ser submetida à verdade pela consciência, quando esta cumpre a função que lhe é
própria.
Karol Wojtyla distingue
entre a análise psicológica e a ética. A experiência que o homem tem, na sua
interioridade, de que ele é causa de
seus atos, constitui o ponto de partida
de ambas. Esta causalidade é um elemento constituinte da vivência volitiva. A
vontade é percebida como o centro da vivência daquela causalidade. A partir
daqui, a ética e a psicologia tomam rumos diferentes. A última investiga os
mecanismos da vontade quanto à sua forma de ação. A psicologia utiliza o método
indutivo-experimental e, ao mesmo tempo, procura descobrir os motivos concretos que dão origem ao fim
que o agente escolheu. A ética, por sua vez, tem em vista a busca do
entendimento integral da vivência da
causalidade. E, para isto, procura esclarecer o fim que é o valor
moral. Neste sentido, a causalidade é compreendida como a fonte do valor ético.
Este valor é o elemento que encaminha o
homem para o ser moralmente bom ou mau. A pessoa humana poderá ser boa ou má enquanto se aperfeiçoa como pessoa e, também,
na medida em que manifesta fidelidade ao
valor.
A estrutura da ação do
homem se objetiva pelos pensamentos e atos voluntários. As emoções antecipam,
seguem juntas e se revelam à consciência no tempo em que a ação concluiu.
Existiriam situações em que a consciência não se daria conta do ato objetivo
em si se não existissem as vivências
da emocionalidade e da afetividade. Os estados
emocional-afetivos podem ser
negativos, resumidos no sofrimento, e positivos, manifestados pelo prazer e se
matizando de formas diversas. Karol Wojtyla explica que, neste segundo sentido,
a palavra “Usar” significa vivenciar o
prazer, este prazer que em vários matizes está unido à ação e ao objeto da
ação. (...) O segundo significado desta palavra é igualmente importante para a
moralidade.[6]
O termo usar,
no seu segundo significado, é somente uma aplicação particularizada do
primeiro. Se o homem age, no relacionamento com outro, objetivando o prazer como fim exclusivo,
afastando o sofrimento do horizonte de sua ação, a pessoa se transmuda em um meio para um fim. O usar, no primeiro significado, exprime
um sentido mais amplo e objetivo. No
segundo significado, o sentido é mais
limitado e propriamente subjetivo. A
ética tem como trabalho distinguir o amar do uso, inclusive quando o usar
se disfarce de amor e procure a
justificação nele.
Karol Wojtyla empreende uma crítica do utilitarismo que
identifica o bem maior do ser humano com o prazer. O utilitarismo, em qualquer
modalidade, na medida em que concebe o
ser humano como instrumento, em que o valor da pessoa é entendido como
possível de ser reduzido ao valor da sua função ou utilidade, que pode ser ou
não hedonista. Esta crítica não se dirige, portanto ao chamado utilitarismo personalista para o qual o bem da pessoa deve estar
subordinado a qualquer outro bem.
Segundo o autor em
questão, o utilitarismo se manifesta como característica da maneira de pensar e
de viver do ser humano contemporâneo. Este modo de ser e de pensar aparece,
entretanto, em todas as épocas. Na contemporaneidade, entretanto, o
utilitarismo se exprime de forma conscientemente formulado. A própria
etimologia da palavra acentua a utilidade da ação visto que deriva do
latim uti, que significa usar,
explorar, e do adjetivo
utilis que se traduz para útil
.
O prazer tem formas matizadas. Pode ser mais elevado, enquanto
espiritual, e mais inferior, enquanto sensitivo e material. Os utilitaristas
não podem se dar conta da complexidade do ser humano, dada a sua antropologia
reducionista. O ser humano se compõe, para a visão utilitarista, de
sensibilidade e inteligência. A primeira o leva a rejeitar o sofrimento e
desejar o prazer. A inteligência lhe permite direcionar a sua atividade de
maneira a atender o que a sensibilidade indica. A norma moral fundamental é,
portanto, maximizar o prazer e minimizar o sofrimento para a maior quantia possível de seres humanos.
Karol Wojtyla afirma não
poder concordar com o utilitarismo, apesar aparente razoabilidade do seu
princípio, porque se instala um erro fundamental que é admitir só o prazer como o único ou supremo bem, ao qual devem
subordinar-se todos os outros bens da atividade do homem e da sociedade humana.[7]
O prazer, na verdade,
pode aparecer colateral, e ocasionalmente,
no agir. A estrutura da ação humana fica contradita se o prazer é posto
como o fim último da atividade humana. O que a consciência e a moral ordenam,
aquilo que é bom, conforme a verdade,
exige alguma renúncia que se opõe ao prazer. Ao mesmo tempo, como o
prazer e o sofrimento se vinculam a um ato concreto, eles não podem ser, total
e antecipadamente, determinados nem projetados. O utilitarismo concebe tudo como meio,
inclusive a pessoa, para o bem que é o prazer. Os postulados utilitaristas
levam a admitir a pessoa como sujeito e
objeto de uso de vivências prazerosas. Cria-se a situação do uso
recíproca entre as pessoas. A concepção utilitarista, desta forma, vem
influenciar o ser humano nas suas múltiplas áreas de relacionamento. Ao mesmo
tempo, os utilitaristas esbarram numa
contradição interna quanto ao seu princípio. O prazer não se estende além do
sujeito, ele é, concretamente, um bem para
este sujeito. Na verdade, pode
ocorrer um altruísmo ilusório. O prazer de um somente é avaliado pelo prazer do
outro. Procura-se, ainda, a deleitação
em colaborar e constatar o prazer do parceiro hedonista. Acontece uma espécie
de combinação de egoísmos disfarçados de amor. Procura-se o máximo de gozo para
as pessoas envolvidas. Elas se enredam no egoísmo escondido no seu
relacionamento. Se, entretanto, dar
prazer ao outro deixa de ser prazeroso, corta-se o vínculo promovido pelo
deleite porque cessou o bem que se procurava e pode surgir o mal. Desta forma,
o relacionamento perde consistência porque se exauriu o deleite promovido pelo
uso parceiro. A indiferença pode se instalar entre os dois ou em um deles.
Cessada a utilidade que uma pessoa tem para a outra, desfaz-se, também, a harmonia. Havia, na verdade, egoísmos
aliados com o objetivo de conquistar o prazer comum. O amor constitui apenas uma
simulação para esconder o egoísmo explorador da outra pessoa, tendo em vista o
máximo de prazer. A pessoa, como se vê, continua sendo o meio para um o fim que
é o prazer. Cada pessoa se permite ser instrumento do egoísmo alheio, na
condição de utilizar o outro para o
próprio fim egoísta. Elas concordam em descer para o nível ontológico de meio,
permitindo serem violentadas em sua natureza pessoal que é a de serem somente
fim da ação. Karol Wojtyla considera esta situação a antítese do amor: “devo considerar-me como um meio e um instrumento, já
que assim considero o outro”.[8]
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