SERMO
IV
(DOS
MAIS BELOS SERMÕES DE
HUGO
DE SÃO VÍTOR)
(1096 - 11 fev.
1141)
Sobre
a Natividade da
Virgem
Maria
"Ave, Estrela
do Mar"
Irmãos caríssimos, o
mundo presente é um mar. À semelhança do mar, ele fede, incha, é falso e
instável. Fede pela luxúria, incha pelo orgulho, é instável pela curiosidade.
Faz-se necessário, pois, irmãos caríssimos, possuir um navio e as coisas que
pertencem ao navio se quisermos atravessar sem perigo um mar tão perigoso.
Importa que tenhamos um navio, um mastro, uma vela e duas traves entre as quais
se estende a vela, uma trave superior e uma trave inferior, assim como um
sinalizador ao alto pelo qual possamos avaliar a direção do vento. Devemos
possuir cordas, remos, leme, âncora e a comida que nos for necessária. Tenhamos
também uma rede, com a qual possamos pescar algum peixe. Vejamos, porém, o que
todas estas coisas significam.
O navio significa a
fé, que em Abraão teve início como em sua primeira tábua. Com Isaac e Jacó o
navio aumentou consideravelmente. Depois deles o navio passou a crescer com a
propagação das dez tribos. Quanto maior o número dos que criam, tanto mais se
dilatava o navio da fé. Mais ainda se dilatou em seguida, após a passagem do
Mar Vermelho, recebendo os filhos de Israel a Lei de Deus e multiplicando-se na
terra prometida. Vindo depois Cristo e padecendo pelo gênero humano, ouviu-se
em toda a terra o som da pregação apostólica, e este navio muito se dilatou com
a multidão dos povos que nele entravam. No tempo do Anti Cristo, esfriando-se a
caridade de muitos, excluir-se-ão os falsos fiéis e o navio será acabado na sua
parte superior e mais estreita. E assim como em Adão foi colocada na proa a
primeira tábua da fé, assim o último justo será na popa a sua última tábua.
Certamente todos
aqueles que, desde o início, atravessaram proveitosamente o mar do tempo
presente, todos aqueles que escaparam de seus perigos, todos os que alcançaram
o porto da salvação, todos eles navegaram no navio da fé, e foi por ele que
realizaram a travessia.
Pela fé Abel
ofereceu a Deus uma hóstia mais agradável do que Caim, pela qual obteve o
testemunho de sua justiça e pela qual, já falecido, ainda falava. Pela fé Henoc
agradou a Deus, e foi transladado. Pela fé Noé construíu uma arca para a
salvação de sua casa. Pela fé, ao ser chamado, Abraão obedeceu dirigir-se ao
lugar que lhe haveria de ser dado. Pela fé Sara, a estéril, recebeu a
capacidade de conceber. Pela fé Isaac abençoou cada um de seus filhos. Pela fé
José, ao morrer, lembrou-se do retorno dos filhos de Israel à terra prometido,
e lhes ordenou para lá transportarem os seus ossos. Pela fé Moisés foi
escondido ao nascer. Pela fé negou ser filho da filha do Faraó. Pela fé
celebrou a Páscoa. Pela fé os filhos de Israel atravessaram o Mar Vermelho. Pela
fé se derrubaram os muros de Jericó. E que mais ainda direi? O dia não será
suficiente para falar dos santos da antiguidade que pela fé venceram reinos,
operaram a justiça, alcançaram as promessas. Destes alguns fecharam as bocas
dos leões, como Daniel. Outros extingüiram o ímpeto do fogo, como os três
jovens; outros convalesceram de sua enfermidade, como Jó e Ezequias;
tornaram-se fortes na guerra, como Josué e Judas Macabeu; por meio de Elias e
Eliseu algumas mulheres receberam de volta seus falecidos que ressuscitaram.
Outros foram cortados, não aceitando serem livrados da morte temporal em troca
da transgressão da Lei, como os sete irmãos cujo martírio lemos no Segundo
Livro dos Macabeus. Outros foram apedrejados como Jeremias no Egito e Ezequiel
na Babilônia; foram cortados, como Isaías; mortos pela espada, como Urias e
Josias, ou andaram errantes, como Elias e outros eremitas (Heb. 11, 4-38). E
todos estes, e muitos outros, atravessaram pela fé os perigos do mundo
presente, e foram encontrados provados pelo testemunho da fé.
As tábuas deste
navio são as sentenças das Sagradas Escrituras, e para sua fabricação algumas
destas tábuas nos são trazidas pelo Velho Testamento e outras pelo Novo. Os
pregos, pelos quais se unem estas tábuas, isto é, pelos quais se unem estas
sentenças, são os escritos dos santos, pelos quais são colocadas em
concordância as coisas contidas em ambos os testamentos. Estas tábuas são
cortadas pelo estudo e aplainadas pela meditação.
O mastro, que se
dirige para o alto, significa a esperança, pela qual nos erguemos à busca e ao
conhecimento das coisas celestes, conforme está escrito:
"Buscai as
coisas do alto,
não vos interesseis pelas terrenas,
pensai nas coisas do alto,
onde Cristo está sentado
à direita de Deus
Pai".
Col. 3, 1-3
A vela é a caridade,
que se estende para a frente, para a direita e para a esquerda. Estende-se para
a frente pelo desejo das coisas futuras; para a direita pelo amor dos amigos,
para a esquerda pelo amor dos inimigos. As duas traves superior e inferior significam
a rezão e a sensualidade; a superior é a razão, e a inferior é a sensualidade.
A caridade deve firmar-se superiormente pela razão, na qual deve permanecer
imovelmente presa; inferiormente, porém, deve ficar presa mas movendo-se, pois
por ela deve exercitar-se na boa obra. É assim que é feito no navio material,
porque a trave superior não se move, mas sim a trave inferior.
O sinalizador
superior do vento significa o discernimento dos espíritos. Para isto o
sinalizador, ou o que quer que o substitua, é colocado sobre o mastro, para que
através dele se distinga o vento ou a direção de onde ele sopra. Deste
sinalizador, isto é, do discernimento dos espíritos, foi escrito:
"Examinai os
espíritos,
para ver se são de Deus".
I Jo. 4, 1
E também:
"A outro é dado
o discernimento dos espíritos".
I Cor 12, 10
As cordas são as virtudes, a humildade, a
paciência, a compaixão, a modéstia, a castidade, a continência, a constância, a
mansidão, a bondade, a prudência, a fortaleza, a justiça, a temperança. Estas
cordas, isto é, as virtudes, devem pelo seu exercício ser sempre estendidas
para que por elas possa firmar-se o mastro da nossa esperança. De fato, não há
mastro da esperança que possa manter-se firme se estiver ausente o exercício
das virtudes.
Seguem-se os remos,
que saem do navio e mergulham nas águas, os quais significam as boas obras, que
procedem da fé e se estendem às águas, isto é, aos próximos. As águas são os
povos, que tem suas origens pelo nascimento, fluem pela mortalidade, e refluem
pela morte. Devemos, porém, ter estes remos não apenas à direita, para que não
façamos o bem apenas àqueles que nos fazem o bem, mas também à esquerda, para
que façamos o bem àqueles que nos fazem o mal, conforme está escrito:
"Fazei bem aos
que vos odeiam".
Mt. 5, 44
E também:
"Se o teu
inimigo tem fome,
dá-lhe de comer;
se tem sede, dá-lhe de beber".
Rom. 12, 20
O leme, pelo qual se dirige o navio,
significa o discernimento pelo qual somos conduzidos em frente, de modo que não
nos dissipemos à direita pela prosperidade, nem sucumbamos à esquerda pela
adversidade. A nossa âncora é a humildade, que é lançada para baixo e pela qual
nosso navio se estabiliza, para que não ocorra que, soprando o vento das
sugestões diabólicas e agitando-se o mar de nossos pensamentos nosso navio se
rompa e afunde nas profundezas. O navio de nossa fé deve, portanto, tornar-se
firme e estável pela humildade, para que no tempo da tentação embora não possa
se entregar a um livre curso, possa permanecer firme em seu lugar.
Devemos ter nosso
alimento pelo estudo das Escrituras. Os maus não apetecem este manjar, conforme
está escrito:
"Sua alma aborrecia todo alimento,
e
chegaram às portas da morte".
Salmo 106, 18
Ele é dado aos bons, conforme está escrito:
"Enviou a sua palavra para curá-los,
para
livrá-los da ruína".
Salmo 106, 20
A rede significa a pregação. Devemos
utilizá-la sem cessar, para poder com ela pescar os homens submersos nas ondas
do mundo presente e, retirando-lhes as escamas dos pecados, prepará-los para
Nosso Senhor Jesus Cristo. Devemos também, conforme o costume dos marinheiros,
cantar as canções do mar pela modulação do louvor divino, conforme nos diz o
Salmista:
"Bendirei o Senhor em todo o tempo,
o seu
louvor estará sempre na minha boca".
Salmo 33, 1
Depois de tudo isto, porém, ainda será
necessário para nós a ação do vento, que significa a inspiração do Espírito
Santo, para que por ela nos dirijamos ao porto da tranqüilidade, ao médico da
salvação, à terra prometida, à casa da eternidade. O Senhor nos dará o vento
pela inspiração de seu Espírito, conforme está escrito:
"Toda dádiva excelente
e todo
dom perfeito
vem do
alto
e
desce do Pai das luzes".
Tiago 1, 17
As luzes são os dons; o Pai das luzes é o
autor, o doador e o distribuidor destes dons. O dom perfeito significa os dons
da graça. Ele, que nos deu os demais bens, seja os que nos vem pela natureza,
seja os que nos são dados pela graça, nos dará também o vento favorável, isto
é, o Espírito Santo.
Para que, porém,
irmãos caríssimos, possamos atravessar este mar com proveito, saudemos
freqüentissimamente a Estrela do Mar, isto é, a bem aventurada Maria, e
invoquemo-la saudando-a dizendo:
"Ave, Estrela do Mar".
Segundo o costume dos marinheiros, ergamos
sempre nossas preces à bem aventurada Maria, assim como ao seu Filho. Seja ela
para nós uma mãe espiritual, por meio de Jesus, fruto de seu ventre, o qual,
nascido dela e por nós entregue, é Deus, e reina feliz, pela vastidão dos
séculos que hão de vir. Amén.
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